Cheguei do Recife Antigo no domingo à noite, muito cansada, destruída. É carnaval! E por mais que eu fale para mim: “vai devagar, seu corpo está diferente, não abuse para não adoecer” o outro cérebro só diz: “Acorda, vamos, tem tanta coisa linda rolando, vamos, vamos, tem que aproveitar, pra que dormir? Vai lá ver! Aí fico no dilema de me auto equilibrar para não adoecer, mas aproveitar e voltar a sentir alegria e um quentinho no coração que há muito tempo não sentia. E rolou, tava muito bom! Tô vendo muita coisa boa de cultura, conseguindo ficar leve, bebinha, comer bem, gastar pouco e o mais importante não adoecer me divertindo (risos).

No fim, dormi uma hora e meia e o carro chegou. Fomos de 5h da manhã para Nazaré da Mata-PE, eu Morgana, a fotógrafa e a motorista, que por incrível que pareça era uma mulher. (Incrível como esse projeto está e é desenvolvido, magnetizando só mulheres para essa construção). Eu apaguei, deu 2 minutos já estava desmaiada, acordei somente quando chegou na sede. Lá na AMUNAN, a ONG que organiza o maracatu só de mulheres, tinha outra equipe filmando, e disseram que a Globo também iria. A casa era grande, com roupas todas organizadas nas cadeiras, a cozinha à todo vapor fazendo café para todas as mulheres ali, muitas já estavam lá se arrumando.

Lucicleide nos recepciona e ao mesmo tempo organiza tudo. Ela diz: “Tá precisando de gente para carregar o símbolo, você quer ser?” Eu topei! (risos). Sem saber o que me esperava, ela me mostrou a roupa, o símbolo do maracatu, uma vara de madeira com uma estátua de gesso em cima. Na hora eu vi uma mulher, meio rainha de rosa brotando de uma vagina!! (risos), achei um máximo, uau, uma homenagem às nossas perseguidas (risos), que inocente eu né?! Ainda pensei, como que uma ONG ia fazer algo assim? Mas foi o que eu vi, (risos).

Tomamos café, cuscuz com ovo e o povo de fora comeu do lado de dentro da casa, enquanto que as mulheres que iam desfilar, comeram numa outra parte da casa, perto da cozinha. Achei estranho a divisão, mas aceitei, vi ali que éramos as convidadas, onde iam querer nos dar coisas boas, conversar e já aproveitar para contar algumas histórias da ONG. Tudo uma delícia.

Coloquei a roupa da corte! Muito diferente, parecia do meu tamanho, eu estava muito feliz em desfilar. Lá também estavam maquiando todas as integrantes, ficou lindo o que fizeram em mim, ela maquiava uma atrás da outra, do jeito que pediam, mais ou menos chamativa, com as cores rosas e tons de prata. As mulheres musicistas começaram na mesma sala a tirar o saxofone para treinar. As meninas que iam de caboclas de lança começaram a se formar, assim como as baianas e a corte de reis, rainhas e princesas, Mateus e Catirina, TODAS mulheres. 

O clima era de acolhimento e alegria. Em nenhum momento fiquei insegura, nem com medo de julgamentos, muito menos julgando, senti um amor muito especial e uma alegria que só a união do feminino sabia oferecer. Me vi sorrindo o tempo todo. Estava feliz de ver aquele grupo. Encontrei umas meninas que já conhecia, fiquei ainda mais tranquila de não ser a única de fora. Saímos para a rua.

Me falaram a minha posição,eu fui, como já sabia minimamente como seguir um cordão, então só fui. Na rua, na frente da sede, fizemos o cordão nos quatro cantos da encruzilhada, quase que pedindo a benção para a saída do desfile. Entendi naquele momento porque o símbolo estava faltando alguém para carregá-lo, ninguém queria levar, porque ele era BEM pesado o babado da vagina com a rainha, mas consegui, me diverti horrores vendo as meninas alegres e dançando, só senti a mesma coisa. 

Na rua muitos homens ficavam olhando para o símbolo, para o grupo, uns caboclos de lança desmontados na rua passavam pela lateral, ficavam olhando, uns filmavam. Achei curioso o olhar dos homens na rua, era sempre de um estranhamento, diferente das mulheres transeuntes, que batiam palma, se alegravam, eram sempre muitos sorrisos e alegria compartilhada.

Passamos na frente da entrada do desfile e esperamos o Maracatu mirim chegar, pois eles eram os primeiros e nós as segundas, atrás viriam todos os outros maracatus da cidade, sempre com muitos homens. Era notório perceber a diferença de indumentária e das roupas. O nosso era colorido, vibrante, brilhava, os outros quando passavam por nós, apagadinho, xoxo. Quando falei com duas musicistas, elas falaram que achavam que o símbolo era uma flor de lírio com a rainha saindo do meio, na hora eu falei o que eu achava, e rimos muito juntas! “É uma vagina, uma vulva e a rainha saindo de dentro!” Chamamos um cara na rua pra perguntar o que ele via, na mesma hora ele respondeu: “Uma rainha Clitoriana, uma deusa!” (Risos). Eliane a fundadora disse que era uma flor mesmo, mas que a interpretação tá na cabeça de quem vê né?! Rimos todas juntas. 

Continuamos o percurso do desfile atrás do maracatu mirim. Atrás de nós estavam os maracatus masculinos, umas cores mais apagadas, muitos olhares para nós, tudo era muito diferente. As nossas cores se iluminavam e via muitos sorrisos ao redor. No palco, uma das musicistas foi homenageada por ser professora de trompete e ensinar muita gente na cidade e ajudar a perpetuar a cultura da cidade. Foi bem bonito e emocionante.

Eliane a fundadora também deu seu discurso bonito falando que o lema é: “Lugar de mulher é onde ela quiser”, que elas estavam ali, não para competir com os homens, mas para serem parceiros na construção do maracatu, porque elas eram metade da população e mãe da outra metade! Achei lindo essa frase, vi muitas mulheres sorrindo, a globo filmou e entrevistou quase todas. Confesso que era tanta gente filmando o grupo, que uma hora me senti mais uma ali “sugando”, mas sei que não era isso, que era uma troca, pra elas era muito importante documentar e reafirmar seu lugar na história da cultura. Foquei nesse discurso. Confesso que desfilar com o símbolo me ajudou a reafirmar a troca e a parceria.

Depois andamos de volta até a sede, Lucicleide falou de outra apresentação de 15h no recife, se soubesse antes, teria me organizado para ir junto e nem combinava com o carro. Ela deu uma provocada, uma outra menina disse que brincar de maracatu era coisa séria, me senti meio mal por não poder ir à tarde, falei  na hora num impulso “mas eu vim para assistir, brinquei dentro pelo acaso”, já morta de vergonha. Fiquei com a sensação de poder dar um jeito, mas já tinha combinado com a motorista de nos pegar, estava exausta do dia anterior e escutei meu corpo. Se eu fosse, seria para agradá-las, mesmo sabendo que poderia ser uma ótima experiência, mas meu corpo exausto, poderia não aproveitar também. Foi bom ter me respeitado, me senti ouvida por mim.

Na sede, serviram almoço e achei muito legal a organização de todas, mas de novo nós comemos separadas das participantes. As filmmakers e todos que eram de fora, comeram numa sala de jantar. Mas acho também que o lugar de todos não cabia, vai saber, tem o jeitinho pernambucano e especialmente do interior de tratar bem a  visita, entendi que era isso, porque a comida foi a mesma. E assim, voltamos para Recife, mortas de cansaço, em plena segunda-feira de carnaval, banhadas de energia emocional feminina, para continuar até a quarta-feira de cinzas.