O carnaval é banhado de ritualísticas desconhecidas de sua origem, mas que todo mundo segue e continua a fazer por simplesmente ver e sentir o quanto aquilo é gostoso, divertido e nos leva a lugares inimagináveis.
Cada vez mais vejo o quanto que os terreiros de umbanda e candomblé, os povos Bantos, iorubás, kongos, Nagôs, zulus, entre outros, influenciaram a construção de toda uma tradição que hoje alegra um povo e uma nação inteira como o Brasil.
As escolas de Samba no eixo Rio e São Paulo, o Axé na Bahia, o frevo e o Maracatu em Pernambuco, tudo construção dessa mistura de povos africanos com os povos originários, mas também os europeus, sim os europeus. Eles que trouxeram muito de sua cultura, meio óbvio, por serem os colonizadores e quem impunha uma forma de se viver, mas o que me pega, é como que os escravizados conseguiram achar brechas e fendas para continuarem sendo alegres, apesar das adversidades da vida, numa demarcação imposta pela igreja e pelos colonizadores.
Acho que é isso que a palhaçaria me ensina, como conseguimos nos fazer rir, apesar de tanta coisa que nos leva para o lado contrário. Quero aprender com esses povos ai, que há muitos séculos já faziam isso e muitos fazem até hoje.
Quando você olha pra um grupo carnavalesco, qualquer um que seja, a primeira coisa é, não tem necessariamente “um dono”, quase tudo é coletivo. Segundo, o carnaval não é feito pela elite, nem pelo governo, é feito pelo povo que angaria apoio financeiro de diversas maneiras e com algumas dificuldades, para se manterem de pé, perpetuando uma cultura e uma manifestação dessa como é o carnaval dessa magnitude. Hoje, alguns estados e governos apoiam alguns blocos, mas de forma muito escassa e com muita luta e reivindicação dos organizadores. E terceiro, o prazer, a alegria e a diversão são alguns dos maiores objetivos.
Com certeza existem conflitos e disputas, mas a busca maior é no processo comunitário que culminam em 4 dias de fevereiro, como a expressão e a vivência máxima da felicidade que foi o percurso para chegar até ali. Como que um grande coletivo, se movimenta e trabalha por meses a fio para apenas 4 dias, ou às vezes só um dia, uma hora que é a hora do desfile? Falando assim parece surreal, mas é o que acontece. Só vivendo pra saber, porque não é o fim que está em questão, não é o carnaval em si, mas o processo para se chegar até ele! É a organização, os ensaios, as reuniões, a preparação, tudo que envolve o chegar até o carnaval, é o carnaval. Ele dura quase que o ano todo, é uma cultura carnavalesca, não é somente O carnaval.
Os diversos encontros, ensaios, prévias, criações, músicas e figurinos novos, dilemas, coletivos, patrocínio, tudo vai girando em torno de criar novas formas de ser alegre.
As músicas podem se repetir, o caminho também, mas sempre há algo novo, de novo, ressignificado. Essa é a magia da tradição, eu reproduzo algo que já vem pra mim, de uma forma nova, ganho a força dessa ancestralidade que já ritualiza a alegria, e eu aqui, posso reinventá-la dentro de um novo passo, que perpetua o que já vem sendo feito. Olha que incrível, quer ser mais terreiro e o culto à ancestralidade que isso?
As pessoas se contaminam porque a música nos embala, ela toca nos nossos corações, é a batida binária que se repete entrando em consonância com as batidas do coração. os tambores e os sopros, criam melodias e muitos pontos das entidades vão pras ruas, porque é a sintonia humana que vem desde a sabedoria espiritual, a vivência nos terreiros e a sua forma de ir até as ruas. Não tem como uma pessoa não ouvir o frevo e não querer pular, ou ouvir um samba de bateria e não querer sambar…
Frevo da Saudade – Bloco da Saudade
Quem tem saudade não está sozinho
Tem o carinho da recordação
Por isso quando estou
Mais isolado
Estou bem acompanhado
Com você no coração
Um sorriso, uma frase, uma flor
Tudo é você na imaginação
Serpentina ou confete
Carnaval de amor
Tudo é você no coração
Você existe como um anjo de bondade
E me acompanha neste frevo de saudade
Composição: Aldemar Paiva / Nelson Ferreira
Vejo afoxés subindo ladeiras em bonecos gigantes, levando multidões, trios elétricos, blocos, orquestras, baterias, alegorias, o que faz uma pessoa ficar horas e horas em pé dançando, cantando?
Pra mim é a sensação de pertencimento. Quando estou lá no meio, cantando com todo mundo, adorando aquele bloco, faço parte de algo que é maior do que eu, arrisco dizer, que é a sensação micro de uma película de Deus, uma sensação de que pertenço a algo maior do que eu sou, então posso relaxar, quase um útero materno, que cuida e nos diz pra onde eu vou, é quase a sensação de voltar à origem, de estar em contato com o que nos criou, a arte popular, a coletividade por algo maior do que eu, que me dá a sensação boa e alegre de coletividade, que já vive cotidianamente um corpo separado, um corpo adulto, cheio de endurecimentos solitários de responsabilidades. É a reza em ação, através de um profano que cultua a sensação de estarmos em coletivo, adorando a felicidade.
Momentos como esses são raros, por isso nós trabalhamos tanto por meses, para ter e repetir aquela mesma sensação todo ano. Criamos uma memória coletiva alegre inconsciente, que é ativada sempre que repetida. E isso não vai parar, vamos continuar a criar e recriar, ritualizar a alegria, conjuntamente com suas denúncias e firmezas de um povo que resiste e insiste a dizer:
“nós estamos aqui”!!